Arte, design e valor intrínseco.

12 de nov. de 2024

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Sobre Arte

Imagine um cenário no qual você, durante uma viagem muito aguardada de férias, visita um certo ponto de particular interesse cultural e vislumbra então ali uma surpreendente edificação de impacto magistral que o transporta para um estado sublime e transcendente de espírito. Pense agora talvez naquele momento que, sentado na varanda de seu apartamento ou no quintal de sua casa, relaxando em um clima de domingo super agradável, você coloque aquele seu álbum preferido para tocar e o ouça sentindo no coração a cada acorde coisas que somente poderiam ser descritas pelo mais talentoso e inspirado poeta. Em momentos como este, estás a apreciar uma bela peça de design, pensada para atingir um público alvo definido e alcançar objetivos comerciais, ou uma grande obra de arte, fruto da mais pura e crua expressão criativa do artista? Ambos estes exemplos, na verdade, citam peças que possuem tanto apelo comercial, sendo sim pensadas a partir de motivações mercadológicas, quanto trazem a alma de um artista que foi capaz de expressar de maneira ímpar sua criatividade. Onde então ficam as fronteiras entre o que é, por exemplo, design e o que é arte?

Vamos iniciar pensando como então utilizamos o conceito de arte. Por muitas vezes, por exemplo, é comum ver a palavra sendo citada com o objetivo de descrever algo produzido por um indivíduo que desenha, compõe, pinta ou se apresenta. Neste sentido temos arte como arte visual ou peça produzida manualmente que exprime algum tipo de ilustração visual para um público. Apesar de comum, ao meu ver, é uma definição da palavra que não faz jus ao peso que o conceito deveria carregar. Em outras situações, em contrapartida, e de maneira muito mais interessante, utilizamos o termo para descrever alguma característica transcedental de um objeto ou atividade. Trata-se de utilizar a palavra para descrever alguma circunstância, objeto comum ou situação e atividade que representaram para os expectadores verdadeiras obras de arte, obras primas. Aqui aparece então arte como algo que vai além da atividade em si, mas que diz respeito a de que maneira e em qual circunstância foi executada a ação. Importante também é definir uma certa divergência comum entre esferas formais e conceituais da arte durante o discurso corriqueiro e até analítico das pessoas. Dimensões formais dirão mais respeito à técnica aplicada na execução de uma determinada peça artística enquanto a dimensão conceitual dirá mais respeito à ideia e mensagem por trás da intenção da construção e representatividade da obra.

Muito se descreve também, e aí partimos para a análise dos termos em destaque no texto, o designer como um artista. Empresas, por exemplo, possuem setores e direções de arte e contratam artistas para todo o tipo de desenvolvimento de peças publicitárias e campanhas. Mas se arte traz consigo este fator transcedental no qual se avalia a atividade em seu contexto e não em si mesma, como podemos convergir arte para uma atividade de negócios que visa pura e unicamente um resultado comercial? Importante é reparar, aqui, que design tem como princípio fundamental manter o usuário e suas necessidades como centro do processo criativo, no sentido de ser capaz de diagnosticar e satisfazer demandas de determinados públicos de interesse. Porém arte, em seu sentido mais puro, pode ser produzida sem necessariamente levar em conta necessidades reprimidas de um público específico, mas pode ser fruto da simples e crua necessidade de expressão de um indivíduo. Arte portanto, apesar de sim demandar um público, não é necessariamente feita para ele. Já design, por sua vez, é.

Como citou Oscar Wilde em seu livro: “all art is quite useless” (em português, algo como “toda a arte é bastante inútil”). Ele traz aqui para atenção justamente esta ideia de arte como algo que não busca diagnosticar e resolver demandas práticas e materiais reprimidas do público, mas como algo que dá luz ao valor que aquilo possui em si mesmo. Seu impacto com os movimentos de “estética e decadência”, trouxeram consigo esta força de algo que justamente contribui com o colapso de uma sociedade indulgente e superficial. Em suas palavras: “art for art’s sake” (em português, algo como “arte pela arte”). Trazendo então contraponto à arte por determinada instrução didática moral. Em sua peça “the importance of being earnest” é descrita uma exposição sobre a hipocrisia e egoísmo de um mundo repleto de atividades para valor extrínseco, um mundo sem arte. Muito importante também aqui neste ponto é lembrar das palavras de Tolstóy em seu livro, com as quais é pertinentemente descrito que arte não está definida simplesmente por noções de beleza e prazer, não está definida pela propensão inata da humanidade de jogar e se divertir. Mas arte está verdadeiramente relacionada à condição primária para a vida humana, à comunhão entre almas, à necessidade da comunicação entre artista e audiência. Arte necessita propósito transcedental. Arte então se constrói a partir da ideia de algo feito além do necessário, com mais paixão e apreço para o indivíduo que a produz. Algo que agrega para si mesmo algum valor intrínseco.

Sobre Design

Como isolar, visando então o melhor entendimento da matéria, o conceito de como se pensa design, de maneira não necessariamente atrelada ao conceito de arte trabalhado até aqui? Design por si só segue, segundo minha própria visão e metodologia, alguns passos definidos. Muitos destes passos foram popularizados por grandes influências dos processos de design desenvolvidos hoje a partir de literaturas como “Design Thinking”, “Lean Sturtup” e “Agile Manifesto”, dada a grande importância que as empresas de tecnologia e de software ganharam na sociedade atual. Antes, inclusive, de pensar em design em si, é muito importante definir a gestão do projeto, uma vez que para que o processo de design ocorra de maneira fluida, gerir corretamente objetivos, tarefas, time, prazos, orçamento, riscos e comunicação, dentre outras coisas, é de fundamental importância. Tudo começa com um objetivo externo claro em mente, um problema a ser resolvido, um marco a ser alcançado. Feito isso, é primeiramente então necessário desenvolver um estágio de “empatia”, no qual se busca entender em profundidade o problema a ser resolvido, quais são os personagens que participam do mercado, quais são as características e motivações de cada um desses personagens e fazer uma leitura correta do contexto completo. Se realiza, desta maneira, um processo iterativo que visa descobrir, definir e validar temas e hipóteses relevantes ao problema inicial de interesse. Em um segundo momento, já se dividem duas vertentes muito importantes que, de maneira integrada, constituem o Marketing & Vendas e o Design & Desenvolvimento de Produto. Para cada um destes setores então deve feito um também iterativo processo de Ideação, Prototipação e Testes. Visando ter em mãos um produto de qualidade e um processo e comercialização eficiente. Em um terceiro momento, por fim, tais setores convergem para a construção do Serviço ao Cliente, no qual serão garantidos o suporte e padrões de satisfação definidos para o projeto.

Consumidores então, a partir de muitos fatores e influências, formarão e adaptarão suas preferencias e curvas de utilidade para diversos produtos e serviços. Negócios têm não só que se adaptar a tais referenciais, mas também visam afetá-los com a maior eficiência possível. Esta será uma preocupação central do design. Não só mudanças no ambiente afetam o comportamento e preferências das pessoas, mas a própria percepção do indivíduo sobre o meio pode mudar através de processos de ressignifação cognitiva. A ideia de gameficação aparece por exemplo como um conceito muito relevante para a discussão que estamos construindo, visando no caso trazer elementos de jogos para situções externas a eles, com o fim de trazer a motivação que indivíduos apresentam ao jogar e se divertir para outras atividades de interesse do designer. Trata-se da busca por maior engajamento do usuário em atividades relevantes para a empresa.

Definir um game, contudo não é uma tarefa tão simples. Como bem apontou Ludwig Wittgenstein em seus escritos, não é possível definir com clareza as fronteiras daquilo que é um jogo ou deixa de ser. Alguns aspectos, porém, são identificáveis em jogos no geral. A maioria parece apresentar algum fator competitivo e lúdico à atividade, funcionando como uma espécie de fuga engajante da realidade. Evidência interessante disso, por exemplo, é o fato de que objetivos grandes demais podem desmotivar o jogador, aparentemente objetivos precisam manter algum grau de superficialidade e leveza para que não afetem negativamente o engajamento. Nas palavras de Friedrich Schiller: “Jogar é o dispêndio despretensioso de exuberante energia.” E como disse George Santayana “Jogar é tudo que fazemos de maneira espontânea e pelo fim em si mesmo.”. Ou seja, existe uma relação interessante entre jogar e o conceito de arte que viemos trabalhando até então. Importante notar que elementos comunmente presentes em jogos visam então utilizar gatilhos cognitivos e comportamentais encontrados em indivíduos humanos com o fim de aumentar o engajamento do jogador. Yu kai chou, por exemplo, descreve em seu método “Octalysis and actionable gamefication” uma perspectiva interessante para a matéria.

Outra derivada deste tema é a própria definição de diversão e o entendimento de o que torna tão complicado definir o que torna algo divertido para alguém. David Eagleman possui um corpo de trabalho muito interessante sobre a neurociência da ação de jogos nas pessoas e outras diversas teorias sobre o que torna algo engraçado também foram propostas, como a da superioridade, da incongruência e do relaxamento. Na sociedade atual vemos um caso interessante de como casas de apostas e criptomoedas de certa maneira se tornaram uma espécie de gamificação do mercado financeiro varejista tradicional, o que expõe também importantes questões sobre a ética da gamificação e seus possíveis impactos negativos nos jogadores. De maneira geral, vemos que design tenta servir, da melhor maneira possível e se utilizando de todos os recursos possíveis, ao usuário.

Sobre Impacto

Interessantemente, então, vamos percebendo que o design com o potencial de transformar o mundo sempre traz consigo, também, arte. Nas palavras de alguns mestres que admiro, encontram-se algumas evidênciaspara esta hipótese: Oscar Niemeyer, por exemplo, diz que “Curvas são a essência do meu trabalho porque são a essência do Brasil, pura e simplesmente. Em arquitetura não é suficiente ter o prédio certo que funcina bem, ele pode também ser lindo, pode também ser diferente, pode surprender.” Nas palavras de Yohji Yamamoto’s: “Eu acho a perfeição feia, em algum lugar nas coisas que os humanos fazem, eu quero ver cicatrizes, falhas, desordem, distorção. O espírito de vanguarda não é só um jovem sentimento - Eu vivo minha vida a partir dele.”.

Talvez venhamos a perceber que para o público geral, não basta um produto de qualidade, precisamos de ferramentas para que arte seja entregue a nós. Chegamos a essa ideia então de que na ausência de valor intrínseco na vida das pessoas, na ausência de arte, design passa a ser mais do que apenas sobre valor extrínseco, sobre aquisição e recompensas, mas sobre um veículo de significado. Viver sem valor intrínseco, gera incontestavelmente um sentimento de vazio e superficialidade na existência do indivíduo que invariavelmente se torna insuportável. Alguma dose de atividades de valor extrínseco também são bem-vindass é claro, mas o mundo de hoje parece cada vez mais se apoiar neste tipo de existência tornando a realidade excessivamente vazia e sem propósito. Dada a aparente própria falta de propósito e valor intrínseco da própria vida e existência em si, como bem apontaria Abert Camus, torna-se necessária voltar-se à arte. A realidade é anti-mimética, o que observamos na natureza não é aquilo que existe, nem aquilo que decidimos ver, aquilo que fomos ensinados, através da arte, a ver. Arte então informa a natureza e se projeta dentro de nós. Como descreveu René Girard, desejamos mimeticamente, não sabemos o que desejar, copiamos desejos. Passa então a ser, compartilhar vida, sempre que possível, o nosso dever.